sábado, 31 de março de 2018

Não tive muito contato com meu pai, apesar de carregar dele o sobrenome que, em Joinville, abria portas as quais nunca quis atravessar.

Fui criada pela minha mãe. Mulher que eu vira forte, a qual teve um primeiro casamento de violências várias e que encontrou em meu pai uma salvação daquela dependência financeira.
Sempre ouvi dela "lute por si, estude, tenha seus bens". Ouvia ainda "tenha um marido que lhe banque e que supra todas as suas necessidades; mas deixe os seus bens intocáveis, caso ele lhe der um chute".

Nunca me prendi muito à segunda parte, apesar de, em alguns relacionamentos heteroafetivos, ter percebido que eu pressionava os caras para irem adiante em si e em suas profissões - foi mal ae.

A primeira parte do que minha mãe dizia sempre me ajudou a ir adiante, a não depender de ninguém, assim como me fortaleceu a indignação, em uma cidade com valores germânicos e de colonialidade, de que a mulher teria uma determinada função - além de ser obediente e agradável, deveria ser esposa, mãe e se restringir a um espaço (poderia ser público) de auxílio (nunca atrapalho) aos homens. Ah, questionei, questionei muito. Incomodei, também, eu sei. Algumas salvações coletivas foi quando me deparei com um pessoal que questionava as discriminações, em uma levada punk'straight edge, e quando, mesmo em grupos religiosos, encontrei a aceitação de você ser o que quiser ser e aceitar o outro como ele é. Não foram as principais, mais foram importantes.

Recebi muitas críticas da minha mãe, contudo, pois "aquele cara nunca era bom", "você não se porta como deve", "você me decepciona falando isso ou fazendo aquilo", "essas pessoas não são boas para você". Alguma coisa eu não entendia nessa lógica, mas, hoje, penso que eu sublimei muita coisa e, até mesmo, deixei de ouvir outras. Tudo bem: apesar de minha mãe não compreender (aceitar) muito do que eu falei (do que eu era!), eu me esforcei a compreendê-la e a dizer que a respeitava, sempre - mesmo ela achando que eu a estava desrespeitando (algo que sempre me doeu).

Até que saí de casa para assumir a vaga de um concurso público em Floripa. Não fui levada a sério "quando você quiser voltar, filha, volte". Eu sinceramente não entendia - afinal de contas, tinha realizado um sonho que nunca tinha sonhado direito, mas que, de um dia para o outro, se tornou realidade. Ela não estava feliz e isso me incomodava. Eu queria fazê-la feliz, queria sentir a sua aceitação ou, sei lá, seu reconhecimento, mas tudo era tão velado, quieto, truncado, que eu sentia que não a tinha em torcida, por algum motivo.

Me firmei. Ela viu que eu não retornaria. Passou a dizer que minha mudança de cidade lhe causou problemas emocionais e físicos. Aí, eu já tinha aprendido a diferenciar responsabilidade e expectativas e passei a notar algumas referências dela. Não me culpei.

Minhas tatuagens para ela passaram a ser vergonha, "motivo de choro dia e noite". Ainda não entendia, e ouvia "uma pele tão linda marcada desse jeito". Não entendia porque já era adulta e não precisava mais de controle ou aceitação - precisava de respeito e diálogo. Não entendia porque, vamos lá, aquela velha história "meu corpo, minhas regras", "isso é meu, faço o que bem entender", etc.

Não entendia a dor, o choro, o lamento por eu defender a liberdade e a autonomia das pessoas serem o que quiserem e o que são. Não entendia a discussão por eu me posicionar ferozmente contra "piadas" racistas, não entendia a discussão por eu me posicionar sobre o direito à privacidade de pessoas homoafetivas. Compreendia, até, uma pretensa justificativa religiosa, mas meu limite de compreensão era a expressão do nojo, da repulsa, do ódio. Eu não entendia.

Me impulsionei ao trabalho com mulheres. Feminismos. Quis libertar e comecei a me libertar profundamente de crenças que, sutilmente, me amordaçavam e prendiam os pés. Questionei minhas bases mais profundas: questionei minha linguagem, minhas roupas, meu cabelo, meu jeito de me expressar, meu jeito de me relacionar. Percebi o delírio nefasto de sexo por sexo e relacionamentos por sexo. Percebi, ainda nisso, a ferida física que isso pode causar nas pessoas. Me abstive de muita "obrigação" dessas crenças, as quais, conjuntamente, encontrei na categoria heteronormatividade.

Pude aí perceber como amar, de fato, a mulher que me tornei, finalmente. E pude, sem esforço, amar, em parceria, outra mulher.

Sabia do posicionamento da minha mãe. Mas eu era filha, os pais ("devem") desejam a felicidade par seus filhos. E era amor, sem violência. Ela entenderia, desde que eu fosse com calma.

- mãe, não quero me relacionar com mais nenhum homem (primeiro mês) - silêncio
- mãe, vou me relacionar com mulheres (segundo mês) - silêncio
- mãe, estou amando uma mulher (terceiro mês) - pelo amor de deus, filha!

Foi um processo de três meses até ouvir dela, dentre outras coisas, que eu não tinha um pênis para me relacionar com mulheres. Eu sei que não tenho um pênis e sei que mulheres não têm pênis e isso não é relevante. Mas ouvir isso foi crucial para eu nunca mais ligar para ela, nem ela para mim. Ela nunca se interessou, em 5 anos, por onde eu morava - então não posso dizer que ela não veio mais me visitar.

Aí eu passei a entender algumas coisas.

Eu não saí de casa para casar. Saí para trabalhar.
Todo o meu ser e minhas expressões não, necessariamente, seriam atrativas a um homem, pois não era obediente, mansa e, às vezes, também não era sexy (porque já fiz muito essa pose - poser, sim). Eu era algo que um homem não queria, aparentemente, como tatuagens, fala forte, tênis, com musculatura, que lutava artes marciais.
Lembrei das vezes em que ela dissera "a mulher deve ficar em casa, mas esse mundo faz com que ela tenha que ir trabalhar".

Juntei algumas coisas e, estava na cara: a função da mulher declarada em toda a minha vida. A questão é: eu não ouvi, eu sublimei, me exclui de lugares em que esse fosse o reforço de comportamento, respirei outros ares, tive experiências fora desse sistema. Ultrapassei limites e me vi sendo eu. Só isso - e cada vez mais.

Feriado de Páscoa, é aquela história da família, né? Tive muito isso quando minha família era fortalecida (antes do falecimento dos meus avós). Nesse sentimento, hoje, em insônia, procurei o nome dela na internet e encontrei alguns comentários como "volta ditadura", "bolsonaro 2018", "família projeto de deus, parabéns" e entendi tudo.

Hoje, todos nós estamos perdendo laços pela chamada polarização.
Estamos perdendo, em um nível mais profundo, sim.
Mas também estamos enxergando, também, e aprendendo a marcar posições: pelo que vale a pena viver, afinal de contas?
Pelo que vale a pena se posicionar e comemorar?

Nesse sentido, a única coisa que posso sugerir é, se o seu discurso foi católico ou evangélico (visto que possui uma base de referencial valorativa específica), por gentileza, seja coerente nas palavras de Jesus.

Se não, e pretender a um discurso de ódio, esteja pronto, porque nós também estamos e não temos mais medo.

Afinal de contas, quem é algo para que sua própria família deseja a morte, nada mais nos afeta.