Para quem não sabe, eu corro.
Quando falo isso, sempre tem aquele
palhaço engraçadinho que pergunta: "Corre de quem? Da polícia?". Eu rio
aquele sorriso amarelo e respondo: "Hehe, não. Corro da minha taxa alta de triglicerídeos".
Mas a verdade, confesso-lhes: estou habituando meu corpo a empreender grandes fugas e a resistir a várias situações adversas. Por que isso? Bem, para quem consegue ver o caos em que vivemos, a resposta é simples: no dia em que todos (ou a maioria) descobrirem que vivemos numa pura ficção e que todas as normas (jurídicas, sociais, culturais, etc.) que nos sufocam foram criadas por outros seres humanos, iguais a nós, o que nos dá o direito de contestá-las e, quiçá, desrespeitá-las, a luta pela sobrevivência será intensa e eu quero estar preparada.
Pois bem.
Estava eu, hoje, em mais um
treino de combate run noturno quando tive a (in)feliz ideia de fazer um caminho diferente.
"Se eu virar aquela esquina, posso subir ali, dar a volta por aquela rua e, tchram, teste de resistência de morro cumprido".
Beleza.
Fui subindo feliz a rua, após contornar a esquina. Ultrapassados uns 20 metros, quase no topo do morrinho, eu olho para o meio da rua: numa distância de uns 5 metros, um cachorro de porte médio me encara.
E paro imediatamente. Finjo-me de poste.
Só não dei luz.
Talvez por isso ele não tenha se enganado: começou a latir desvairadamente e a vir devagar ao meu encontro.
"Opa, opa, opa..." - balbuciei e, caminhando de costas, ouço um latino atrás de mim: um outro canino (menor) com vários caninos à mostra. Sim, esse cachorro só tinha caninos: daqueles gigantes e pontudos.
Atravesso a rua apavorada, retornando por onde vim. Quando estou quase a guardar o coração no peito de novo, contornam a esquina mais dois da quadrilha: um preto, maiorzinho (parecia o mafioso) e um branco (parecia um cafetão).
E rosnam vindo chegando perto, com outros mil caninos contra mim.
Enquanto eu penso "fodeu, fodeu, fodeu", de um lado do hemisfério cerebral, do outro lado, eu penso "chuto promeiro o preto, depois o branco... mas se eu atacar primeiro, os outros vão vir para cima, daí fodeu, fodeu, fodeu... vou esperar algum atacar. Malditos muros altos. Agora eu sei para que me serviria o
le parkour... deveria ter continuado!!! E a meleca do muay thai que não serve para cachorro!!! Para quem eu berro??".
Penso, então, em correr e minhas pernas atendem o pensamento antes da minha decisão: é o pior. O cafetão e o mafioso correm junto e se aproximam um pouco, rosnando um rosno (?) que vinha dos infernos.
Viro-me para eles. Encaro-os. Seus filhos da putela. Venham, se são machos.
Não, não falei nada. Na verdade, mal respirei.
E não os olhei nos olhos. Dizem que o respeito é tudo nessas horas - eu olhava só para os dentes.
Fui caminhando de costas para a rua de onde vim e encarando: "não demonstra medo, Grazy, não demonstra medo - só respeito, só respeito".
Tornei meu corpo para a frente da direção que tomava, mas olhando para trás, para eles, que continuavam rosnando.
O branco ainda deu um daqueles passinhos à frente em falso só pra ver se eu corria, mas não corri: continuei encarando-os, mantendo o meu passo firme (aposto que se eu corresse, ele olharia para o preto, gargalhando ¬¬).
Olhei para frente e já calculava como subir em algum dos carros que estavam na rua e gritar para o porteiro de um prédio.
Olhei para trás: vi os quatro me filmando.
Tomei uma distância maior e fiz-lhes um gesto despudorado.
E ri.
E pensei.
E concluí:
(a) Não adianta enfrentar o perigo se não está preparado. Nessas horas, a covardia se transforma em razão
da sobrevivência.
(b) Os menores, às vezes, têm coragem só porque contam com os maiores do lado - mas, na verdade, não são grande coisa.
(c) Nunca subestime o tamanho de alguém.
(d) Um passeio inocente de um cachorro pode representar uma estratégia de dominação mundial.
(e) Toda e qualquer corrida pode se tornar, mesmo, um treino de combate.
Cheguei em casa, contei para a mãe, que, aos prantos de rir, falou: "Eu não disse que esses cachorros formam uma quadrilha no bairro?"
E eu achando que eram os gatos que conspiravam... outro paradigma quebrado.