quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Tapinha dói: na alma, na pele, na espécie


Sessenta anos de vida. Trinta e cinco deles dedicados ao lar, aos filhos e, especialmente, àquele homem que a esmurrava quase todo dia e a ameaçava de morte como em um cumprimento de bom dia e de boa noite.
Filhos crescidos e criados. Apenas o casal naquela construção que não era nem nunca fora um lar, mas sim um prédio de agressões psicológicas e físicas. O lar dele era o bar. O dela, o banheiro trancado e seus contidos gemidos e lágrimas.
Ao acordar, colocava a chaleira ao fogo: ao café. Preparava a mesa, cortava o pão feito na noite anterior antes de ele chegar em casa aos berros, com aura etílica, com socos nas costas e chutes nas pernas. Mancando, abriu a porta dos fundos e olhou para o céu, que era sempre cinza. Não pensava há muito tempo; só conseguia sentir medo, solidão, fraqueza.
- Mulher!!! Cadê a bost* da minha blusa? - gritou do banheiro.
- Es-está passada no sofá...
Resmungando algo como "ainda mato uma inútil como essa", atravessou a cozinha, foi à sala, vestiu a blusa e saiu. Era domingo, (mais um) dia de bar.
Ela o seguiu com os olhos como um cachorro acoado e suspirou aliviada ao ouvir o portão se fechar. Mais um dia de paz.
Na fraqueza de si, cuidou-se como pôde, cozinhando, lavando-se, assistindo à televisão.
Dezenove horas. O ranger do portão anunciava algo que ela já ouvira da esquina: aquele homem chegava novamente, às gargalhadas de bêbado com seus companheiros.
Ao entrar em casa, nada de risos. A abertura repentina da porta cava mais ainda o buraco na parede.
- Tem comida, mulher?
- Está na geladeira.
- E por que não está quente?? - bradou enfurecido - Tu sabe que eu quero comer quando chego de noite!!! Mas tu não presta pra nada mesmo, sua cretina!!! É hoje que eu te mato!!!
Ela o venceu na corrida até o quarto, mesmo não entendendo o que a fez reagir daquele jeito, e pegou a arma que tantas vezes serviu de roleta russa no divertimento do marido.
- Sua puta!!! Atira!!! Se tu não me matar, eu te mato!!!

Dois tiros. Um no rosto, de raspão, outro no pescoço. Sangue. Sem morte. Um torpor de alívio a invade inexplicavelmente.

Vozes lá fora. Vizinhança em polvorosa. Sirene. Algemas. Muita gente. 

Prisão. Por trás das grades, a lua e estrelas. Noite sem dormir, dia a raiar.
O sol nasce e não é quadrado. O sol brilha e o céu é azul. Ela volta a pensar.

Cinco dias na prisão. Liberdade Provisória. Hospital. Sem data para alta. 

Mais alguns dias de paz. Até que ele volte, até que o sistema jurídico subverta novamente os valores, até que outra arma seja apontada ou outra agressão desferida.

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Essa é uma história verídica. Nomes e certos dados omitidos para preservar os (A) envolvidos (A).

Somos todos animais. 
Uma hora, voltamos a pensar.

Nada justifica uma agressão.
Nem um copo quebrado, nem uma palavra dita equivocadamente, nem um pensamento diferente, nem uma ação inesperada.

Tapinha dói. Envergonha. Subestima. Maltrata.
Nada justifica. Nada.

2 comentários:

  1. Nossa Grazy! Que história triste. Teu texto prende o leitor amiga! Excelentes colocações!!

    Tapinha dói. Envergonha. Subestima. Maltrata.
    Nada justifica. Nada. [2]

    beijos amore *-*

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  2. Triste mesmo, Ju... mas é uma realidade cotidiana em muitos silêncios "familiares".

    Bjão, gatona :*

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