Sessenta anos de vida. Trinta e cinco deles dedicados ao lar, aos filhos e, especialmente, àquele homem que a esmurrava quase todo dia e a ameaçava de morte como em um cumprimento de bom dia e de boa noite.
Filhos crescidos e criados. Apenas o casal naquela construção que não era nem nunca fora um lar, mas sim um prédio de agressões psicológicas e físicas. O lar dele era o bar. O dela, o banheiro trancado e seus contidos gemidos e lágrimas.
Ao acordar, colocava a chaleira ao fogo: ao café. Preparava a mesa, cortava o pão feito na noite anterior antes de ele chegar em casa aos berros, com aura etílica, com socos nas costas e chutes nas pernas. Mancando, abriu a porta dos fundos e olhou para o céu, que era sempre cinza. Não pensava há muito tempo; só conseguia sentir medo, solidão, fraqueza.
- Mulher!!! Cadê a bost* da minha blusa? - gritou do banheiro.
- Es-está passada no sofá...
Resmungando algo como "ainda mato uma inútil como essa", atravessou a cozinha, foi à sala, vestiu a blusa e saiu. Era domingo, (mais um) dia de bar.
Ela o seguiu com os olhos como um cachorro acoado e suspirou aliviada ao ouvir o portão se fechar. Mais um dia de paz.
Na fraqueza de si, cuidou-se como pôde, cozinhando, lavando-se, assistindo à televisão.
Dezenove horas. O ranger do portão anunciava algo que ela já ouvira da esquina: aquele homem chegava novamente, às gargalhadas de bêbado com seus companheiros.
Ao entrar em casa, nada de risos. A abertura repentina da porta cava mais ainda o buraco na parede.
- Tem comida, mulher?
- Está na geladeira.
- E por que não está quente?? - bradou enfurecido - Tu sabe que eu quero comer quando chego de noite!!! Mas tu não presta pra nada mesmo, sua cretina!!! É hoje que eu te mato!!!
Ela o venceu na corrida até o quarto, mesmo não entendendo o que a fez reagir daquele jeito, e pegou a arma que tantas vezes serviu de roleta russa no divertimento do marido.
- Sua puta!!! Atira!!! Se tu não me matar, eu te mato!!!
Dois tiros. Um no rosto, de raspão, outro no pescoço. Sangue. Sem morte. Um torpor de alívio a invade inexplicavelmente.
Vozes lá fora. Vizinhança em polvorosa. Sirene. Algemas. Muita gente.
Prisão. Por trás das grades, a lua e estrelas. Noite sem dormir, dia a raiar.
O sol nasce e não é quadrado. O sol brilha e o céu é azul. Ela volta a pensar.
Cinco dias na prisão. Liberdade Provisória. Hospital. Sem data para alta.
Mais alguns dias de paz. Até que ele volte, até que o sistema jurídico subverta novamente os valores, até que outra arma seja apontada ou outra agressão desferida.
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Essa é uma história verídica. Nomes e certos dados omitidos para preservar os (A) envolvidos (A).
Somos todos animais.
Uma hora, voltamos a pensar.Nada justifica uma agressão.
Nem um copo quebrado, nem uma palavra dita equivocadamente, nem um pensamento diferente, nem uma ação inesperada.
Tapinha dói. Envergonha. Subestima. Maltrata.
Nada justifica. Nada.
Nossa Grazy! Que história triste. Teu texto prende o leitor amiga! Excelentes colocações!!
ResponderExcluirTapinha dói. Envergonha. Subestima. Maltrata.
Nada justifica. Nada. [2]
beijos amore *-*
Triste mesmo, Ju... mas é uma realidade cotidiana em muitos silêncios "familiares".
ResponderExcluirBjão, gatona :*