terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Liberdade mutilada


Lucas diz-se livre. E, de fato, é assim que se sente agora, mesmo que seu horizonte restrinja-se ao cercadinho que pessoas, instituições, convencionalismos sociais, impuseram-lhe... e que ele, (in)conscientemente, aceitou.
Jamais sentiu, porém, a ampla liberdade que poderia usufruir, se quisesse. Não uma liberdade absoluta, por óbvio, pois esta é incompatível com a vida em sociedade e impossível aos mortais, incapazes de manipular, com plenitude, todas as situações que lhe dizem respeito – seu ponto de vista e seu plano são restritos às suas conveniências e projetos e desprovidos da consciência holística da sequência dos fatos que presenciam, ou não.
Enfim, é nessa relatividade que se focaliza Lucas, cheio de amarras, normas ilógicas, medos supérfluos.
Ele não tem liberdade porque não a conhecera por tempo suficiente, quando criança e porque, quando prestes a rebelar-se da insatisfação pessoal a que era submetido, fora-lhe usurpada com sua permissão. Sua vida é permeada pela imposição do orgulho pessoal em detrimento dos demais. Familiares e seu círculo social sempre lhe imprimiam a necessidade de se destacar contra todos, ao invés de ter fomentada a sua tenra habilidade: pensar.
Em suas iniciais primaveras, era apontado como tímido; mas o silêncio que provocava ao seu redor era essencial para que, em sua doce inocência, analisasse com surpresa tudo ao seu redor e, simplesmente, abstivesse-se de praticar algo que julgasse inútil ou fizesse algo que ponderasse interessante.
Depois, aprendera que sua voz possui força para desestruturar qualquer circunstância que lhe parecesse incômoda, estranha, superficial. Passou a questionar tudo e todos, e via-se feliz. Mas, compreendeu logo que questionamentos incomodam, que conversas sobre o que ele cria importante eram ignoradas e que a sua habilidade cognitiva era desvalorizada. Constatou que o mínimo tremor no que está padronizado como certo gera, nos outros, medo e ira e, para si, desprezo. As pessoas não gostam de mudanças porque se sentem inseguras com o transformar, pensou. Querem manter tudo no controle, na previsibilidade, na segurança de poderem se prevenir quando algo refoge do planejamento de cada um. Ponderou, por fim, que têm uma parcela de razão.
Pelas inexoráveis consequências de seu pensar, apesar de as pressões forçarem contra suas perguntas, e não contra a sua pessoa, sentiu-se rejeitado. O desvalor atingiu sua alma e enraizou-se em sua auto-estima.
Implorando reconhecimento pelo simples fato de ser ser humano, abandonou suas inspirações e embarcou na corrente da maioria, enfilerando-se na concorrência por um lugar tido como importante pelo seu meio, qualquer que seja esse posto.
Calou-se. Alienou-se. Mas ainda conseguia ver que era mais um na grande massa, consciência esta que poderia salvá-lo, visto sua vontade de expandir suas habilidades em potência.
Esperava ainda, enquanto a lucidez o visitasse (mesmo que ofuscada pela torrente de certos e errados à sua volta), que sua alma pensativa pudesse emergir à luz e proporcionar-lhe contentamento.
Precisaria, para tanto, lutar contra outros que, à força, suprimiram-lhe suas escolhas para que pudesse exercer sua racionalidade e evoluir para o seu melhor como ser humano. Um ponto inicial triste, uma partida pós-sono, uma batalha lúcida e determinada, um fim vigilante.
Sabia Lucas que ser condicionado a opções limitadas por outros é um estado de dormência, uma anestesia que impede a sensação do mundo tal qual como é. Sabia, ainda que vagamente, que já analisava os fatos e seus semelhantes com os olhos de um cego e com o coração de um insensível. Não falava mais por si: estava entorpecido pelos conceitos, sentimentos, pensamentos, ideais de outras pessoas.
Se não mudasse sua sorte, não poderia ser a individualidade a que fora destinado, ou não presenciaria o desenvolvimento de suas potencialidades, que o poderia levar aos mais variados caminhos.
Lamentou-se. Não viu forças e nem caminhos – suas mãos sentiam-se incapazes de retirar o véu presente em seus olhos que o impedia de enxergar adiante.
E, hoje, lamenta-se por Lucas... deixou-se entorpecer. Sem a certeza de seu sucesso, quedou-se ao movimento das forças que o vetorizavam de todos os lados. Ampliou seu desejo por posses valorizadas por todos, seguiu tendências da maioria, aderiu a hábitos fugazes. Esqueceu suas reais prioridades, conspurcou sua essência, deixou-se de lado. É, agora, o que todos querem que ele seja.
Não se permitiu ter escolhas, lavou as mãos para sua própria vida. É seu próprio carrasco. Cingiu-se ardilosamente em uma compulsão de não querer pensar, de não querer lutar por si, de não se responsabilizar pela vida que o ergueu. Presenteia com sua liberdade qualquer um: dirigentes religiosos, governantes ao pão e circo, pais, amigos, amantes. Pensa ser proveitosa a abstenção racional e a ausência de identidade e se envolve tanto em vazio-por-vazio que chega a chorar sem motivos conscientes, a sofrer sem dor, a lamuriar-se irracionalmente. Não é feliz consigo mesmo.
Mas sabe-se: sua luta interna é seu próprio ser clamando por atenção, o que fora relegado a outrem e que era para ser destinado à sua evolução como humano. É a vida lutando para existir em Lucas. São suas individualidades bradando por amor por si, pela liberdade, pela sua própria felicidade.
Não se diga, contudo, que, em tal caso, a liberdade não fora exercida, pois o ser humano tem o direito de fazer o que entender de bem consigo. Mas quem se mutila de tal forma, inevitavelmente, nunca será o que poderia ser nem nunca chegará no seu topo.

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